A ciência, o senso comum e os desafios em tempos negacionistas
Equipe OAMa
13/08/2021
Escrito por: Gabriela Inhesta, Otávio Rocha, Andreza Oliveira, Rafaella Ferneda
Edição: Felipe van Deursen
Você saberia explicar de forma sucinta o que é ciência? Ao longo de vários séculos, filósofos da ciência tentaram definir o que isso significa. Porém, ainda hoje não há um consenso na resposta.
A ciência se trata de um campo muito dinâmico e vasto. Sendo assim, como podemos definir de forma prática o que é ciência e saber quando um conhecimento tem base científica ou não? O que valida um conhecimento científico? Tudo começa com a observação de um problema, com a curiosidade ou necessidade de resolvê-lo e a ignorância inicial de uma resposta.1
A necessidade de resolver e entender fenômenos e a natureza de tudo aquilo que nos cerca é inerente à nossa espécie. Essa vontade de encontrar respostas é o que nos leva a criar diferentes formas de conhecimento e crenças. Uma das primeiras grandes questões da humanidade foi procurar soluções melhores para viver e sobreviver em grupo. Assim, pode ter surgido a ideia de senso comum, facilitando a tomada de decisões.
O senso comum é a forma mais básica de respondermos às perguntas deste mundo. No entanto, não é possível desenvolver o senso crítico, o saber científico, a partir de testes e observações padronizadas com o senso comum. Por quê? De forma geral, o senso comum surge por meio de experiências e observações ocasionais, pontuais ou até mesmo pessoais. Geralmente, ele se limita à aparência do fenômeno, o que acaba formando, inclusive, preconceitos.
Vamos supor que, na infância, você sentiu dor no estômago e sua mãe preparou um chá para aliviar a sua dor. Ela aprendeu isso com a mãe dela (sua avó), que aprendeu com o pai dela (seu bisavô) e assim por diante. Sua mãe contou a você que seus antepassados observaram que, ao tomar esse chá, as dores de estômago pareciam passar. Assim, esse conhecimento foi repassado pelas gerações.
"O que diferencia o senso comum do conhecimento científico são o método e os instrumentos aplicados para se conhecer determinado objeto."
Segundo o filósofo italiano Antonio Gramsci, o senso comum impediria a ciência de evoluir, uma vez que ele é uma visão acrítica do mundo e que, além disso, reproduz o ideal de mundo das classes dominantes. Por outro lado, alguns pesquisadores acreditam que essa curiosidade que permeia o senso comum pode ser um pontapé inicial para o fazer científico. Ele só precisa ser refinado e testado com bases científicas.2 O que diferencia o senso comum do conhecimento científico são o método e os instrumentos aplicados para se conhecer determinado objeto.3
Vamos supor que, na infância, você sentiu dor no estômago e sua mãe preparou um chá para aliviar a sua dor. Ela aprendeu isso com a mãe dela (sua avó), que aprendeu com o pai dela (seu bisavô) e assim por diante. Sua mãe contou a você que seus antepassados observaram que, ao tomar esse chá, as dores de estômago pareciam passar. Assim, esse conhecimento foi repassado pelas gerações.
É conhecimento do senso comum que certos chás aliviam dores de estomago. É conhecimento científico que determinadas ervas possuem propriedades medicinais, que aliviam dores de estomago. Imagem: Jubair1985/Wikimedia Commons{' '} CC {' '}
Repare que não houve qualquer experimento ou teste controlado que comprovasse a eficácia do chá no alívio da dor. Mesmo assim, após tomar o chá, sua dor cessou, então você concluiu que ele provavelmente é eficaz para dores de estômago. No senso comum, o estabelecimento de nexos causais desse tipo é frequente. O senso comum, no exemplo em questão, não se diferencia do conhecimento científico pela veracidade, uma vez que o chá realmente possui propriedades medicinais. Além disso, ele não se distingue em relação à natureza do objeto, já que ambos os conhecimentos podem tratar de um mesmo problema. Existem, por exemplo, diversos estudos científicos que investigam propriedades medicinais de plantas.
"O método permite ao conhecimento científico ser sistemático, matematicamente verificável, crítico, objetivo, falseável e cumulativo, o que garante solidez e veracidade às conclusões geradas."
Assim, o conhecimento científico se distingue do conhecimento popular/senso comum pelo método aplicado para se chegar à resposta do problema. O método permite ao conhecimento científico ser sistemático, matematicamente verificável, crítico, objetivo, falseável e cumulativo, o que garante solidez e veracidade às conclusões geradas.
De forma geral, o senso comum tende a se concentrar apenas na aparência do objeto de análise, o que pode levar a respostas subjetivas e a juízos de valor. Voltando ao exemplo, sua família sabe que o chá faz bem, mas não sabe por quê. O conhecimento científico, por sua vez, vai além da aparência dos objetos e busca traçar relações entre a natureza dos fenômenos por meio de comprovações que possam ser testadas.3,4
A ciência surge da ignorância, pois é por ignorarmos como algo funciona que buscamos investigá-lo. Fazer ciência pode como andar em um quarto escuro, tateando e tropeçando, até encontrar, acidentalmente, um interruptor e acender a luz, como descrevia o matemático inglês Andrew Wiles. Em seu livro “Ignorância: Como ela Impulsiona a Ciência”, o biólogo norte-americano Stuart Firestein problematiza: não estamos ensinando a ignorância, que é exatamente o que acende a chama da curiosidade para se desvendar e descobrir coisas novas.5
Livro Ignorância: Como ela Impulsiona a Ciência” do biólogo norte-americano Stuart Firestein
O método científico é um conjunto sistemático de etapas que guia o passo a passo do fazer científico, auxiliando na detecção de erros e na tomada de decisões, o que permite a produção de conhecimentos com mais segurança e veracidade. E esse método apresenta algumas etapas bem definidas.3
As etapas do método científico
- Tudo começa com a identificação de um problema ou fenômeno que necessite de uma explicação (observação).
- A partir dessa observação, podemos elaborar uma pergunta relacionada ao problema observado. Para responder a essa pergunta, desenvolvemos uma explicação ou resposta temporária que desvende o fenômeno (geração de hipóteses).
- A elaboração das hipóteses de nosso problema pode ser acompanhada de uma premissa sobre o fenômeno que você investiga. A premissa consiste em alguma informação ou proposição sobre o assunto que nos leva a uma conclusão sobre ele.
- As hipóteses são seguidas de previsões, que são as consequências lógicas delas ou detalhamentos capazes de serem testados. Ou seja, é o resultado que esperamos caso nossa hipótese esteja correta.
- A hipótese estabelece relações entre as variáveis teóricas do problema.
- Já as previsões são as representações práticas da hipótese.4
Depois de elaborarmos a hipótese e as previsões, devemos executar diversos experimentos para testar se a hipótese responde ou não à nossa pergunta de forma satisfatória. Essa fase chamamos de experimentação.
Após realizarmos os testes, devemos fazer uma análise crítica de nossos resultados que nos levará a uma conclusão. Essa conclusão pode ou não corroborar nossa hipótese. Caso nossa hipótese não se mostre verdadeira, ela será falseada e devemos buscar novas hipóteses que possam explicar melhor o fenômeno.
A falseabilidade garante que a ciência seja dinâmica e esteja sempre progredindo à medida que novos conhecimentos vão surgindo. Além disso, devemos avaliar se a hipótese pode ser generalizada, ou seja, se ela continuará sendo verdadeira em contextos diferentes dos observados no experimento original. Essa generalização confere à ciência um caráter preditivo, ou seja, que seja capaz de prever o que acontecerá caso a hipótese seja aplicada em cenários diversos.3,4
Vamos a um rápido exemplo: supomos que você, ao tentar ligar a luz de seu quarto, percebe que a lâmpada não acende (observação do problema). Você então se pergunta: por que a luz não está acendendo? Existem vários motivos que levariam uma lâmpada a não acender, mas sua hipótese (ou seja, uma solução possível, mas não necessariamente verdadeira) para o problema é: a luz não está acendendo pois a lâmpada queimou. Se a lâmpada estiver queimada, trocá-la por uma lâmpada nova é a solução para o seu problema (previsão). Então você vai ao mercado, compra uma nova lâmpada e tenta, mais uma vez, acender a luz (experimentação). Você faz a análise crítica dos resultados do teste: se a luz acender, sua hipótese estava correta: o problema estava na lâmpada queimada. Se a luz não acender, sua hipótese será falseada e você deverá procurar outras hipóteses que respondam sua pergunta (falta de energia na região, um problema elétrico na sua casa etc.)
Se tentamos ligar a luz e a lampada não acende, logo criamos hipóteses para explicar o por quê. Será que a lampada queimou? Imagem: KMJ/Wikimedia Commons CC
{' '} Interpretando o mundo a partir da ciência{' '}
Agora que entendemos um pouco mais sobre o que é ciência e como ela é construída, podemos passar a nos perguntar: como a ciência nos ajuda a interpretar o mundo? O processo científico possibilita avanços para a saúde, meio ambiente, tecnologia etc. Quando é bem aplicado, ele pode melhorar a qualidade de vida em termos intelectuais, culturais e econômicos. 6
Mas não se faz ciência de qualidade do dia para a noite. A busca por respostas tão complexas demanda tempo e dedicação de muitas pessoas. É dessa forma que o conhecimento científico produzido ao longo dos séculos serve de mola propulsora para diversas descobertas e aplicações atuais.
Vejamos o físico alemão Albert Einstein (1879-1955), que propôs, em 1905, a Teoria da Relatividade, demonstrando que o movimento modifica a percepção do espaço e do tempo, mas que a velocidade da luz e as leis da física sempre são as mesmas, independentemente da velocidade em que o observador se desloca. Mas como é que isso impacta a nossa vida? Esses conhecimentos são usados atualmente como referência, por exemplo, para ajustar os cronômetros dos satélites dos Sistemas de Posicionamento Global (GPS). Baseada nas comprovações da relatividade, é possível garantir que viagens aéreas, náuticas e terrestres sejam realizadas com coordenadas mais precisas. 7
A vacinação, importante meio de imunização contra doenças nocivas, é uma descoberta da ciência que vem salvando vidas desde o século XVIII, quando a primeira vacina foi criada por Edward Jenner no combate à varíola. De lá para cá, contamos com imunizantes contra muitas doenças, como febre amarela, poliomielite, sarampo, caxumba, tuberculose, gripe, hepatite A e B, e claro, covid-19.
Vacinas, fundamentais para a saúde humana, vem de m processo de descoberta científica de Edward Jenner aind ano século XVII, e que vem sendo aprimorada desde então. Imagem: USDS/Wikimedia Commons CC
Desafios atuais
É exatamente pela enorme importância das pesquisas científicas na sociedade que os cortes de verbas, o aumento do negacionismo científico e a grande desvalorização da área geram tanta preocupação. Em 2021, por exemplo, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) poderá desativar o supercomputador Tupã por falta de recursos. Seria a primeira vez que isso aconteceria desde que o equipamento foi instalado. O Tupã coleta e trata dados meteorológicos, que fornecem subsídios para a previsão e emissão de informes climáticos, alertando, por exemplo, sobre a crise hídrica, estiagem e mudanças climáticas, e contribuindo, assim, para a tomada de decisões ambientais, econômicas e políticas. Com o desligamento, haveria prejuízos imensuráveis para a economia, o meio ambiente e a ciência. Além disso, perderemos dados que garantem uma característica fundamental na ciência: a capacidade de fazer previsões e, portanto, prevenções. 8
"(...)a ciência deve ser um espaço de construção democrática, representativa, acessível e participativa."
Embora a ciência possa e deva ser uma importante ferramenta de transformação e desenvolvimento social, o acesso a ela ainda é muito desigual. Portanto, para que se atendam os interesses da sociedade como um todo e não apenas de uma parcela que detém poderes e recursos, a ciência deve ser um espaço de construção democrática, representativa, acessível e participativa. Além de lutar para que tenhamos condições mínimas necessárias para se fazer ciência de qualidade, devemos lutar também por subsídios e políticas que permitam o acesso igualitário no fazer científico.
Referências
1 CHIBENI, Silvio Seno. O que é ciência. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, 2004.
2 GERMANO, Marcelo Gomes; KULESZA, Wojciech Andrzej. Ciência e senso comum: entre rupturas e continuidades. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 27, n. 1, p. 115-135, 2010.
3 DE ANDRADE MARCONI, Marina; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 8ed. São Paulo: atlas, 2017.
4 APPOLINÁRIO, Fábio. Metodologia da ciência: filosofia e prática da pesquisa. 2. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012.
5 FIRESTEIN, Stuart. Ignorância: como ela impulsiona a ciência. [s.l.]: Editora Companhia das Letras, 2019.
6 DE OLIVEIRA, Anselmo Gomes; SILVEIRA, Dâmaris. A importância da Ciência para a sociedade. Infarma-Ciências Farmacêuticas, v. 25, n. 4, p. 169, 2013.
7 Teorias científicas que mudaram o mundo. CIDEPE - Centro Industrial de Equipamentos de Ensino e Pesquisa, [s.l.] 08 jan. 2020. Disponível em: https://www.cidepe.com.br/index.php/br/blog-interna/teorias-cientificas-que-mudaram-o-mundo-78. Acesso em: 27 jul. 2021.
8 Desligamento de supercomputador do Inpe pode trazer consequências para economia e saúde. Jornal da USP, São Paulo, 11 jun. 2021. Disponível em: https://jornal.usp.br/?p=425022. Acesso em: 22 jul. 2021.