Por que as aves importam? Funções ecológicas das aves e seus serviços ecossistêmicos
Equipe OAMa
10/05/2022
Escrito por: Andreza Oliveira, Maurício Roveré, Rafaella Ferneda e Ruan Vaz
Revisão de conteúdo: Affonso Souza
‘’Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá,
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá. (...)’’
Em ‘’A canção do exílio’’, escrita por Gonçalves Dias, ele retrata um saudosismo pela sua (nossa) terra, fazendo alusão ao canto das aves. Quase que sem querer, no trecho ‘’Nossas várzeas têm mais flores; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá’’, Gonçalves Dias acerta em cheio ao dizer que o Sabiá possui uma ligação direta com a exuberância da flora observada, neste caso, das palmeiras.
Não é exagero, portanto, dizer que aquele sabiá que tanto é cantado durante o poema ajuda a tornar ‘’nossos bosques [com] mais vida’’, já que a dispersão das sementes e potencialização da germinação promove o reflorestamento de florestas. As aves consumidoras de frutos, incluindo o saudoso sabiá da letra, se destacam: a capacidade de voo ajuda a dispersar as sementes para mais longe! Para além de dispersar as sementes, as aves acabam por remover a cobertura carnosa do fruto e quebram a dormência das sementes, o que potencializa a germinação.
Cerca de 70% a 94% da dispersão de sementes de árvores lenhosas é realizada por animais frugívoros (Dixon et al. 1994). O mais incrível é que essas árvores lenhosas correspondem ao armazenamento de 59% (Bello et al. 2021) do carbono florestal do mundo, e esse processo simples acaba por diminuir as emissões do efeito estufa, ajudando a manter não só nossos bosques, mas todo o mundo ‘’com mais vida’’.
Saíra-amarela (Stilpnia cayana) se alimentando de frutos de um arbusto de Melastomataceae.
Mas vamos tentar entender o processo desde o início. Antes mesmo dos frutos serem dispersados, eles precisam ser gerados e, para tanto, um outro importante processo precisa ocorrer: a polinização, que é o encontro do grão de pólen com o estigma de uma flor. A polinização resulta na formação dos frutos e das sementes e é um dos mais importantes serviços ecossistêmicos. É essencial à vida na Terra e garante alimento a uma grande quantidade de espécies - incluindo nós mesmos.
Beija-flor-de-papo-branco (Leucochloris albicollis) alimentando-se de néctar de uma flor pela parte interna.
Os animais polinizam cerca de 90% das angiospermas. Apesar de nem toda visita nas flores caracterizar a polinização - uma vez que alguns espertinhos “roubam” o néctar ou se alimentam das flores sem contribuir para transferência de pólen - muitas aves realizam esse trabalho ao se alimentar de néctar.
Besourinho-de-bico-vermelho (Chlorostilbon lucidus) alimentando-se do néctar de uma flor pela parte externa, sem realizar a polinização.
Qualquer deficiência no processo de polinização das plantas de um ecossistema pode gerar impactos enormes, podendo levar à extinção dessas espécies de plantas e, consequentemente, de animais que se alimentam de suas flores e frutos. Assim, sem a polinização, nossas várzeas certamente teriam muito menos flores, nossos bosques certamente teriam muito menos vida, e, não sei vocês, mas uma visão dessas (ou a falta dela) certamente deixaria minha vida com um bocadinho a menos de amores.
É muito natural e intuitivo que apreciemos e entendamos a importância dos processos envolvidos na dispersão e formação de flores, frutos e sementes. Não há como negar, há um apelo estético. Não à toa as flores são sinônimos de romantismo e beleza. Mas e a importância daqueles processos não tão carismáticos? Àqueles, que apesar de sua enorme importância, são mal vistos?
Pois bem, nem tudo são flores!! As aves não se restringem apenas à dispersão de sementes e polinização. Os serviços ecossistêmicos gerados por esse grupo são diversos, elas são, por exemplo, essenciais na manutenção do equilíbrio da cadeia alimentar, o que nem sempre é uma tarefa muito bonita. Não nos esqueçamos, também, do controle de pragas urbanas exercido pelas aves de rapina ao predarem pequenos roedores e pequenos invertebrados; nem das pragas agrícolas, exercido por muitas espécies ao consumirem insetos e ervas daninhas; ou mesmo do controle populacional de outras espécies, exercido pelas aves carnívoras.
Não é a imagem de um urubu consumindo uma carcaça morta, por exemplo, que vem à nossa cabeça quando pensamos nesse encantador grupo. Erro nosso. Erro nosso (ornitólogos) por não deixar claro o quão importante, e ouso até dizer BONITO, é esse trabalho. O consumo de carniça evita que possíveis agentes patogênicos (que poderiam nos causar doenças) se proliferem no ar, nos solos, nas água e, até mesmo, em outros animais. Quem diria que a tarefa suja, na verdade, tem uma função primordial de limpeza, hein? Nesse quesito, os urubus se destacam por possuírem diversas adaptações específicas tanto para a procura de carniças - vide seu olfato aguçado- quanto para lidar com esse tipo de recurso sem ficar doente - vide seu trato digestivo com pH mais ácido. Além disso, a cabeça e pescoço sem penas, evitam o acúmulo de detritos no animal.
Urubu-de-cabeça-vermelha (Cathartes aura).
O consumo de carniça por aves ajuda muito na dispersão dos nutrientes pelo simples fato desse grupo conseguir voar por longas distâncias. Nestes voos distantes conseguem levar os nutrientes presentes na carniça por distâncias maiores que os microorganismos e pequenos invertebrados seriam capazes. Esse ato de dispersão de nutrientes também é observado em aves marinhas. Essas, por sua vez, acabam por consumir os peixes do alto mar e levar seus nutrientes para as ilhas oceânicas, promovendo uma enorme ciclagem de nutrientes. O mesmo comportamento é visto também em aves da costa que buscam seus alimentos da zona pelágica e trazem para a terra firme.
As aves não só tornam os ambientes em que vivem mais interessantes para observadores, ornitólogos e amantes da natureza. Muitas são o que podemos chamar de engenheiras de ecossistemas - espécies que alteram o ambiente e disponibilizam recursos para outros animais (Şekercioğlu, Whelly e Whelan, 2016). Bons exemplos são as cavidades escavadas nos troncos por pica-paus, quando as espécies que os construíram abandonam os ninhos escavados (ou são expulsos por outro animal), essas estruturas servem como abrigo para aves que nidificam em cavidades, como tucanos, corujas e alguns falcões, e até outros animais, como gambás e outros mamíferos. Pássaros como o joão-de-barro (Furnarius rufus) fazem um serviço semelhante com os ninhos em forma de forno que constroem. Frequentemente são reaproveitados por outros animais, garantido a sobrevivência e reprodução de muitas espécies.
As aves também podem nos contar sobre a qualidade dos ambientes em que elas vivem. Observando alterações na anatomia das espécies, ou simplesmente da diversidade da avifauna de um local, podemos aprender muito sobre a qualidade daqueles ambientes e o que devemos fazer para recuperar e conservar a natureza.
As aves também têm uma importância cultural imensa, pois revelam e simbolizam as interações da biodiversidade aos costumes de diferentes sociedades e civilizações. Elas inspiram a humanidade desde as pinturas rupestres de emas na Serra da Capivara, passando pelas muitas histórias folclóricas e mitológicas, como a fênix que renasce das cinzas, e pelos poemas, como o que abre esse texto. As aves também são fonte de inspiração para muitos filmes e desenhos da atualidade, como Pokémons. Ou seja, a nossa cultura é repleta de penas coloridas. Nesse sentido, as aves têm o poder de sensibilizar as pessoas para a conservação da natureza como um todo (Martins et al. 2021), inspirando-nos a ponto de serem inseridas em momentos de apreço:
"Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá. (...)"
Referências
BELLO, C. et al. Valuing the economic impacts of seed dispersal loss on voluntary carbon markets. Ecosystem Services, v. 52, p. 101362, dez. 2021.
DIXON, R. K. et al. Carbon Pools and Flux of Global Forest Ecosystems. Science, v. 263, n. 5144, p. 185–190, 14 jan. 1994.
MARTINS, F. C. et al. O surpreendente e vasto universo das dimensões humanas nas interações com as aves. ((o))eco. Disponível em: “https://oeco.org.br/colunas/o-surpreendente-e-vasto-universo-das-dimensoes-humanas-nas-interacoes-com-as-aves/”. 2021.
ŞEKERCIOĞLU Ç. H., WENNY D. G e WHELAN C. J. (editores). Why Birds Matter, Avian Ecological Function and Ecosystem Services. The University of Chicago Press, 2016.